Comprimido entre o cinza das curvas da RS-470 e o verde dos despenhadeiros do Vale das Antas, o colorido das frutas e dos produtos coloniais expostos nas tendas de beira da estrada se tornou parte inseparável da paisagem e do imaginário imagético para turistas e população que passam pelo local.  Ao mesmo passo, os vendedores, muitos deles nascidos nas redondezas, guardam em suas memórias as histórias que se acumulam neste que é um dos pontos mais emblemáticos e de maior movimento da Serra Gaúcha.

A reportagem do Semanário percorreu os 15 km da sinuosa estrada entre Bento Gonçalves e a Ponte Ernesto Dornelles, cortando o Distrito de Tuiuty, para ouvir as narrativas e experiências dos vendedores que, há décadas, ganham a vida à beira do rio e da estrada.

Quase 50 anos junto a RS-470

As lembranças mais remotas da RS-470 de Olimar Salvadori, 49 anos, remetem aos seus primeiros anos de infância, quando o trajeto nem sequer era asfaltado. Na primeira metade dos anos 1970, acompanhava seu pai, Orestes, criador de uma das primeiras tendas no local, enquanto ele abria trilhas pela ribanceira para ligar a propriedade da família que ficava na altura do Rio das Antas à poeirenta autoestrada, cerca de 500 metros acima.

Junto com a mulher e os filhos, Orestes fazia diariamente o trajeto, carregando, em cestos que levava nas costas, as frutas que plantava em suas terras para expô-las em uma pequena tenda, dentro dos padrões permitidos pelo Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (Daer) na época.

Curva da Ferradura vista da janela da tenda de Salvador

O som estrondoso e incessante dos caminhões cortando o asfalto que retumba pela tenda vão, talvez ao acaso, ao encontro da primeira memória concreta que Salvadori guarda daqueles tempos. Na época, o ronco não era tão presente quanto nos dias atuais, onde milhares de veículos passam pela estrada diariamente, mas sem dúvida era mais marcante. “Lembro-me dos tempos de piá, que quase ninguém passava ali. Quando escutávamos o ronco de um velho caminhão ao longe, muito para lá da ponte, a gente já se preparava e ficava torcendo para que o motorista parasse e comprasse algo”, conta.

Após a primeira Fenavinho, em 1967, com a vinda de Marechal Castelo Branco para o evento, o governo resolveu investir na região, ciente de seu potencial de desenvolvimento. Então com pouco mais de 40 mil habitantes, Bento Gonçalves começava a passar por grandes evoluções na década de 1970. Com o início e finalização das obras de asfaltamento da RS-470, a indústria vinícola e, aos poucos, o turismo começam a tomar forma. Os impactos também foram sentidos diretamente por Orestes que pode, aos poucos, ampliar seu terreno e dar início à construção de uma tenda maior, a qual o filho mantém com o auxílio da mãe Leonilde há 35 anos.

Ademais do asfalto, a chegada da luz e da água nos anos seguintes permitiu o avanço na produção e ofertas de produto, fidelizando a clientela local e atraindo turistas. “As coisas melhoraram quando chegou a eletricidade e o pai comprou o engenho e começamos a fazer suco de cana e modernizar, mantendo alimentos na geladeira. Fim de semana era cheio de gente aqui próximo a ponte e a gente vendia muito”, lembra.

Mesmo com a alta circulação de veículos nos dias atuais, Salvador comenta que o público tem caído com o passar dos anos e que o trecho tem perdido seu potencial turístico. Outro problema, acrescenta, é a falta de segurança, fato que levou a venda a ser fechada por um período. “No fim dos anos 1980 e começo dos anos 1990 tinha muito furto, levaram até a geladeira. Então fechamos a loja e construímos a casa aqui ao lado para ficar mais próximo, antes de reabrir”, diz.

As experiências positivas, porém, sobrepõem qualquer dificuldade já passada.  Embora as vendas sejam essenciais para a sobrevivência do negócio, são as histórias e vivências compartilhadas com turistas e amigos locais o que ele mais valoriza. Um exemplo é a amizade que fez com um motorista de caminhão de Veranópolis, imigrante da Colômbia, que há seis anos visita sua tenda. “Só hoje, ele já parou três vezes aqui. Passa aqui na frente todos os dias para comprar banana verde”, conta. “Esses dias dei dois abacates maduros que tinha aqui para ele e ofereci açúcar. Olhou-me confuso, e pediu sal, disse que só comia com sal”, conta entre risos. “A gente sempre está aprendendo algo novo”, finaliza.

“É tanta história que não caberia em um livro”

Há alguns meses, ao amanhecer, quando saía de casa para abrir as portas de sua tenda, Alcides Flamia, 68 anos, se surpreendeu ao ver uma silhueta, no mirante ao lado do estabelecimento. O homem, vestido com roupas surradas, que para Ademir parecia um “andarilho”, tinha o olhar fixo dividido entre as montanhas e as anotações que fazia em um caderno. Ele esperou abrir a tenda e pediu um café.  Sentou-se em uma mesinha junto à janela e abriu a mochila espalhando livros pela mesa. “Eu pensava que era um maluco ou alguém estudado pelo jeito que escrevia. Ficava ali olhando pela janela e escrevendo”, conta Ademir. O sujeito também chamou a atenção de um amigo do vendedor que, curioso, foi perguntar quem ele era.

Tratava-se de um argentino que estava caminhando desde Santa Catarina até o Rio Grande do Sul, registrando suas experiências para uma agência de turismo. Segundo Flamia, o mirante que fica bem defronte a “Curva da Ferradura”, o principal atrativo de sua tenda, foi também o que encantou o escritor. “Ele disse que visitou as praias de Santa Catarina, mas o lugar que mais impressionou foi esse mirante, por isso ficou escrevendo bastante aqui. Quando ele chegou, o vale estava tapado de cerração, e quando ela dissipou, ele descobriu que tinha um rio ali e ficou encantado”, conta.

O argentino, no entanto, não é o único personagem que Flamia recorda com carinho. Desde 1982 trabalhando à beira da BR-470, relembra em questão de segundos, um sem fim de pessoas que já passaram por ali, e garante que são “tantas histórias que não caberiam em um livro”. O contato com gente de outras regiões e países, inclusive, é o que mais o encanta em seu negócio. “Acordo já pensando em quem pode entrar pela porta da venda. Imagina estar aqui dia após dia por 37 anos. Não fosse esse contato com gente de todo lugar, a gente se cansava”, exclama.

“O mirante aqui é muito conhecido, o Brasil todo parece saber. Se param 30 carros na tenda, 25 vão ali bater foto e vão embora”, brinca Flamia

Lembra que chegou a anotar o nome dos clientes de fora e de onde vinham em um caderninho de recordação, mas acabou deixando o hobby de lado com o tempo. Destaca, porém, que atende muitos turistas do Nordeste e Norte, e que já conheceu gente de todo o mundo. “Tem pessoas da França, Grécia, Canadá, Rússia, Japão, muitos da Itália. Sempre chega alguém novo. Há pouco tempo, fiz uma tábua de frios para 32 chineses. Um deles falava português, conversei bastante com ele. Eram todos agricultores que estavam pesquisando a produção local. Em julho, prometeram voltar”, comenta.

Ao contrário da venda vizinha, cuidada por Olimar Salvador,  Flamia acredita que o movimento tem aumentado com o passar dos anos, o que, porém, não significa maior lucro. “É só ver o número de caminhões que passam aqui, não para nunca. Mas noto que antigamente as pessoas compravam mais. Hoje elas param, mas gastam menos. Há 20 anos, tinha dia de semana que era mais lucrativo que os domingos de agora”, opina

Ele acredita que, além da crise, o avanço da oferta de produtos em mercados dentro da cidade também é um dos fatores que resultou na queda das vendas. “Antigamente, ali na Ponte era muito movimentado. Naquela época, as pessoas vinham da cidade para comprar frutas, hoje, elas vão aos mercados mesmo”, destaca. Apesar da queda nas vendas, em dias agitados, chega a atender mais de mil pessoas, com a ajuda da mulher, da filha e do genro.

Nascido em Tuiuty, para além das histórias que coleciona e da tenda que foi crescendo com o tempo, acredita que o maior legado de trabalhar e viver todos esses anos na região é ser lembrado da forma como também lembra das pessoas que ali passaram. “Faz alguns dias, recebi a visita de pessoal de Mato Grosso, que tinha comprado comigo há oito anos e lembraram da tenda. Fizeram questão de parar aqui”, conta entusiasmado.

“O som dos caminhões é um alívio”

Para Ademir Both, 62 anos, o som do rio e o canto dos pássaros que pousam nas árvores ao fundo da tenda e os barulhos do tráfego na estrada à frente soam harmônicos. “Gosto dos barulhos do mato, mas o barulho de caminhões é sempre bom sinal, pois alguém pode parar aqui. Ruim é quando não tem som. Às vezes, tem acidente e fica sem passar carro por horas, isso vira um deserto, parece que tudo morreu”, relata.

Após passar grande parte da juventude cruzando os estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Mato Grosso e mesmo a fronteira, indo para o Paraguai, onde morou por três anos, e depois de ter tentado a sorte exercendo diferentes ofícios, o gaúcho natural de Três Passos, foi com sua venda na encosta da BR-470 e a poucos metros da Ponte Ernesto Dornelles que parece enfim ter encontrado o lugar que buscava para “descansar as pernas”.

Um dos últimos vendedores a se estabelecer no local, conta que comprou sua tenda em 1998, de uma família que foi morar no centro de Bento. Assim como os vizinhos, sublinha que as vendas têm caído bastante, mas destaca nunca ter passado por dificuldades. “Uma vez dava muita gente, ainda mais em época de Expobento e Fimma. Vinha gente de todo canto comprar aqui. A gente não vencia pendurar as pernas de salame. Hoje, as agroindústrias estão dentro da cidade e alugam espaços nessas festas, e o pessoal não precisa mais ir tão longe para comprar algo”, sublinha. Outro problema recorrente, conforme assinala são os assaltos e furtos. “A gente já sofreu muito assalto. Quando colocamos a grade melhorou um pouco, mas mesmo assim antes de escurecer temos que fechar tudo”, lamenta.

Apesar das dificuldades, Both não esconde o amor que tem pelo lugar. “Quando olho para fora e vejo a natureza da minha janela nem lembro de tédio, barulho ou problemas; Desde guri quis saber de lugar com rio para pescar e de natureza”, conta. Quando perguntado se costuma pescar no Rio das Antas nas horas vagas, no entanto, afirma que não. “Há uns 10 anos tive que tirar um pulmão. Hoje tenho força e saúde, mas falta fôlego, não posso subir barranco. Então vou em Barbosa e compro os peixes ali que fica mais fácil”, brinca.