No dia 3 de agosto, quinta-feira, completam-se 110 anos de nascimento do general Ernesto Geisel. Natural de Bento Gonçalves, o 29º presidente do Brasil está atrelado a um período conturbado da história do país. Foi o quarto entre cinco presidentes da ditadura civil-militar, que se estendeu por 21 anos no Brasil, e trouxe repressão, censura e violação de direitos humanos.

No entanto, Geisel também é conhecido como o artífice da reabertura política. Foi pelas mãos do bento-gonçalvense que se iniciou o processo de redemocratização. Como ele mesmo definiu, seria um processo “lento, gradual e seguro”. A compreensão da complexidade da figura e da memória do presidente exige um profundo debate sobre a época. O Semanário ouviu diversos personagens para construir um resgate histórico do período.

A ditadura civil-militar em Bento Gonçalves

Para entender o período do governo Geisel, é preciso entender também o contexto do golpe civil-militar na região. Em 31 de março, o governo do presidente João Goulart foi deposto, e iniciava-se o período que se estenderia por 21 anos.

Entre 2013 e 2014, o professor de História e pesquisador do grupo de Pesquisadores das Comunidades Ítalo-Brasileiras, Gustavo Valduga, dedicou-se a um trabalho referente ao período da ditadura civil-militar, especialmente anterior ao Golpe de 1964 e o início dos anos 1970 em Bento Gonçalves e na região.

De acordo com ele, muitas pessoas têm a ideia de que não houve perseguição política nas cidades menores, como Bento Gonçalves. “A ideia que se difunde é que não tinha nada. Mas na verdade existiam pessoas que eram da oposição, e que sofreram com isso. Pela característica da região, mais conservadora, isso se perpetua. Se criou a ideia de que era muito tranquilo aqui. Mas na realidade não era. Havia algum um tipo de resistência sim”, afirma.

Segundo Valduga, Bento era polarizada entre o partido da Arena, e a oposição, feita à época pelo PTB. Com o Partido Comunista na ilegalidade, as correntes de esquerda filiavam-se ao PTB para obterem trânsito dentro dos meios políticos sem serem incomodados. Após os militares assumirem o poder, os membros do PTB que seguiam essa corrente passaram a ser cassados e perseguidos.

Entre os mais ativos do partido estava o deputado federal Paulo Mincarone, natural de Bento Gonçalves. Após o Ato Institucional nº 1 (AI-1), que cassava direitos políticos de figuras que não simpatizavam com o regime, Mincarone perdeu o mandato na Câmara.

Já no período pós 1968, com a intensificação da perseguição política e do cerceamento de direitos, cujo ápice é atingido com o Ato Institucional nº 5 (AI-5) em dezembro, a resistência aumenta, com o foco especialmente em Caxias, feito por estudantes da Universidade de Caxias do Sul (UCS) do curso de filosofia. Entre esses grupos, havia integrantes da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), uma organização que participou da luta armada durante a ditadura “Em cidades como Bento e Garibaldi, por exemplo, o foco era dar suporte à Porto Alegre”, explica.

Outro grupo de resistência da região estava dentro do próprio Exército. No início dos anos 60, o ex-governador Leonel Brizola fundou os chamados Grupos dos 11, que serviriam como células paramilitares de resistência para a luta armada em caso de intervenção militar. Em Bento, segundo Valduga, esses membros estavam dentro do Batalhão Ferroviário. No entanto, ao longo do trabalho de levantamento, ele afirma não ter encontrado nenhuma referência ou nome de possíveis integrantes da época. Já em Garibaldi, segundo ele, os membros do Grupo dos 11 eram conhecidos ainda no período pré-64. “Em Bento não se consegue encontrar referência. Se estavam dentro do Exército, podem ter sido silenciados de alguma maneira”, explica.

Entre outros oposicionistas ao regime em Bento estava o professor Nelson Piletti. De acordo com Valduga, ele atuava em Bento e fugiu pra São Paulo, após o decreto do AI-5. “Ele já estava fichado no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), porque havia sido pego junto com um grupo de Caxias no congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna (SP), em outubro de 1968”, relata.

Antes de fugir para São Paulo, permaneceu escondido na Casa Canônica do São Roque, após ter sido denunciado e sofrido com ameaças de prisão. Hoje, Piletti mora em São Paulo é professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP). Até o fechamento da edição, a reportagem não havia conseguido contato com ele.

Bento “abraça” Geisel: presidente esteve duas vezes na cidade

Em registros da época, encontrados no Arquivo Histórico Municipal, é possível verificar referências a duas visitas do general Geisel como presidente à Capital do Vinho. A primeira delas ocorreu em fevereiro de 1975, na abertura da III Fenavinho. Em outubro de 1976, esteve de volta para a festa de 87 anos de emancipação política do município.

A imagem do general Geisel está atrelada também a avanços. Para a historiadora Assunta de Paris, responsável pelo Arquivo Histórico Municipal, o presidente foi responsável por obras e conquistas importantes. “Ele fez um governo de estadista, além de ser o responsável pelo retorno do país à democracia”, afirma. Para o professor, Geisel é visto como um líder que enfrentou a ditadura e a linha-dura dos militares. “Tem esse aspecto de revogar o AI-5, e ele conserva essa imagem. Mas, ainda, com bastante repressão e cerceamento”, pondera.

De acordo com Valduga, de fato os governos militares atuaram politica e economicamente na região. Ele cita, ainda, que obras e rodovias feitas pelos governos militares. “É uma visão que se tem da ditadura. Muitas obras vieram pra cá. Mas ao mesmo tempo, é preciso discutir a questão da violência. Bem ou mal, o empresariado local apoiou o regime”, aponta.

No entanto, pontua que outros investimentos também foram feitos por governos durante o período democrático. De acordo com ele, diversas obras também foram impulsionadas por políticos da região, como Paulo Mincarone. Líder da União Bento-Gonçalvense dos Estudantes (Ubes) enquanto atuou na cidade, Mincarone foi responsável por encampar a ideia de trazer diversas obras para Bento Gonçalves, como o Hospital Maria Thereza Goulart e um Ginásio de Esportes que seria construído onde hoje está o bairro São Bento, mas que nunca saiu do papel.

“É preciso diferenciar memória de história”

Para o professor de História do Instituto Federal, Tiago Goulart, para entender a complexidade dos pontos de vista trazidos pelas diferentes correntes, é preciso primeiro diferenciar memória de história. “Toda memória é socialmente construída, e não precisa necessariamente corresponder ao que de fato foi. Diferente da história”, explica.

De acordo com ele, cada povo lida de maneira diferente com a memória histórica. Por esse fator, é possível entender porque argentinos e chilenos buscam, desde o fim de suas ditaduras, eliminar nomes de ruas, avenidas e locais públicos que levam nomes de presidentes ditadores, enquanto no Brasil o mesmo processo não ocorre. Em Bento, duas ruas levam nomes de presidentes militares: a Humberto de Alencar Castello Branco e a Costa e Silva.

Outra questão, de acordo com Goulart, é que não há apenas uma memória construída acerca de um indivíduo, mas sim memórias diversas. No caso de Geisel, há o começo da volta da democracia. “Geisel foi um ditador, mas com ele começou a abertura. As pessoas veêm ele como um ‘ditador bom’. Essa memória do ‘mas’ relativiza aspectos negativos e ilumina aspectos positivos. Não é senso comum, é algo da própria historiografia acadêmica”, pontua.

O último ponto citado pelo historiador é de que o fato de Geisel ter nascido em Bento faz com que as pessoas e a cidade busquem criar um lugar de memória para manter a referência. “As pessoas gostam de dizer que cidadãos notórios nasceram em determinados lugares. Não trata-se de uma comemoração, mas sim de uma memória criada”, finaliza.

Exército exalta obras e reabertura

Entre esses lugares de memória, está a Casa Geisel, local onde o presidente nasceu e passou os primeiros anos da infância em Bento Gonçalves. Localizada na rua José Mario Mônaco, próxima ao Hospital Tacchini, o imóvel encontra-se fechado há mais de seis anos.

Atualmente, o Exército trabalha para reativar a Casa Geisel e, consequentemente, o espaço de memória sobre o ex-presidente nascido na Capital do Vinho. De acordo com o coronel Lúcio Mauro Vilotte Moreira Guerra, comandante do 6º Batalhão de Comunicações (6º BCom) do Exército, sediado em Bento Gonçalves, a casa passa por reformas atualmente. “Está sendo feito um trabalho de recuperação, para mais tarde iniciarmos uma restauração, para reabrir a Casa futuramente”, comenta.

O 6º BCom leva oficialmente o nome do General Ernesto Geisel. De acordo com Guerra, o presidente foi o responsável pela manutenção de um Batalhão em Bento Gonçalves. O Batalhão Ferroviário permaneceu no município entre 1943 a 1971 e, após isso, foi para Lages (SC). Em 1975, após a saída do 3º BCom para Porto Alegre, Geisel articulou a criação do 6º BCom no município. Como homenagem, ganhou o nome como patrono da unidade.

Questionado sobre a importância da figura de Ernesto Geisel no meio militar, Guerra destaca que o presidente foi responsável por obras importantes na região e no país. Entre elas, estão a Fundação Educacional da Região dos Vinhedos (Fervi), a criação de estradas, usinas nucleares e a Hidrelétrica de Itaipu. Além disso, contribuiu significativamente para o desenvolvimento das indústrias moveleira e metal-mecânica na Capital do Vinho. “Por fim, deu início ao processo de retorno à democracia”, finaliza.

Jornalista escreveu obra renomada sobre o período

Uma das obras mais reconhecidas sobre o período do governo Geisel foi escrita pelo jornalista Elio Gaspari, pesquisador da ditadura civil-militar. Na coleção intitulada “O Sacerdote e o Feiticeiro”, Gaspari retrata o trabalho de Geisel (o Sacerdote) e Golbery do Couto e Silva (o Feiticeiro), chefe do Gabinete Civil, para a reabertura democrática, com base em documentos e entrevistas.

Na obra, Gaspari cita que ambos “formaram uma parceria sem precedentes na história do Brasil”. Destaca, ainda, que Geisel não queria o fim da ditadura simplesmente para substituí-la por uma democracia, ao mesmo tempo em que não dava valor ao voto popular. Para o autor, ele buscava “mudar porque tinha a convicção de que faltavam ao regime brasileiro estrutura e força para se perpetuar”.

Morte de Herzog ocorreu no governo Geisel

A morte do jornalista Vladimir Herzog, nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo, ocorreu durante o governo Ernesto Geisel. Em 25 de outubro de 1975, o jornalista opositor ao regime foi torturado e morto no quartel-general do II Exército.

À época, o Sistema Nacional de Informações (SNI) afirmou que Herzog havia cometido suicídio. Em 1978, o juiz federal Márcio Moraes responsabilizou, em sentença, o governo federal pela morte de Herzog. Em 2012, o registro de óbito do jornalista foi alterado para constar que a morte havia decorrido de lesões e maus tratos, conforme solicitado pela Comissão Nacional da Verdade.