Com grande infraestrutura e reconhecimentos de qualidade, a região virou o principal ponto turístico de Bento Gonçalves, mas o local , que nem sempre foi tão deslumbrante, se moldou pelas mãos de inúmeras gerações de imigrantes italianos

Localizado no encontro dos municípios de Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul, o Vale dos Vinhedos é o destino mais visitado por apreciadores de vinhos de todo o Brasil. Abrangendo pouco mais de 80 km quadrados, é a primeira região viticultora do país a conquistar Denominação de Origem (DO), em 2012, mesmo ano que foi reconhecida como patrimônio histórico e cultural do Rio Grande do Sul.

Para além das conquistas oficias, os cerros coloridos pelas videiras e a expansão dos negócios que já alcançam a marca de mais de 30 vinícolas, entre empresas familiares e grandes empreendimentos, além de restaurantes e hotéis, desde 2008, consolidaram a área como a mais visitada de nossa cidade. Somente em 2017, foram 415.957 visitantes, de acordo com a estimativa da Associação dos Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos (Aprovale).

Se os reconhecimentos, selos de qualidade e, sobretudo, os números positivos fazem do Vale dos Vinhedos sinônimo de enoturismo no país, a realidade encontrada pelos imigrantes, moradores e produtores que edificaram essa reputação ao longo dos dois últimos séculos era bem diferente. Por meio de documentos e relatos de familiares, a reportagem do Semanário faz um recorrido histórico sobre o desenvolvimento da região.

A epopeia de Marco Luigi

Victor Luigi, 84 anos, ainda vive no lote comprado pelo bisavô assim que chegou da Itália em 1876

“Terras no Brasil para os italianos. Navios em partida todas as semanas do Porto de Gênova. Venham construir os seus sonhos com a famílias. Um país de oportunidade, clima tropical, abundância e riquezas minerais. No Brasil, vocês poderão ter o seu castelo. O governo dá terra e utensílios a todos”.

A miséria que se alastrava pelo norte da Itália em meados de 1870 e o tom otimista das mensagens encontradas em panfletos publicitários da época, como o acima citado, fizeram com que milhares de camponeses italianos encarrassem a aventura de viajar por mais de 40 dias para aportar, com receio e esperança, em terras estranhas do outro lado do Atlântico. Um deles foi Marco Valduga, então com 27 anos, que se instalou no lote 13 do agora Vale dos Vinhedos, lugar onde hoje se encontra a vinícola que leva seu nome.

No mesmo terreno, além do empreendimento, estão mantidas, lado a lado, a pequena casa de madeira construída por Marco, a de seu filho Luigi, e, por fim, mais próximo a estrada, a residência do bisneto, Victor Valduga, 84 anos, que ainda vive no local.

Com os relatos que ouviu do avô, Valduga remonta as histórias e o cenário da região desde a chegada dos primeiros imigrantes, em 1876. Explica, por exemplo, que o “Paradiso chamado Brasile” não era tão paradisíaco quanto o ilustravam. As dificuldades para a família Valduga, por exemplo, começaram antes mesmo de chegar em solo brasileiro. No navio, um dos quatros filhos do casal acabou não resistindo a viagem. O fato, como conta Victor, não foi o único. “Meu avó tinha sete anos, e lembrou o resto da vida de um menino que caiu no mar e se afogou”, relata.

Uma vez no Brasil, a situação não foi muito melhor. Em vez de terras de abundância, Marco e família encontraram algo semelhante a uma selva, o que, no entanto, não os desanimou. “Era tudo mato, mas quando desembarcou lá no rio ele via um paraíso mesmo”. Nos relatos do avô, porém, a ideia de um cenário inóspito é fortalecida. “No tempo que serravam as tábuas para fazer a casinha, de noite eles puxavam cipós nas árvores e improvisavam redes para dormir bem no alto para evitar cobras e onças”, narra.

Relembra ainda que mesmo com a casa edificada, o cuidado era constante. A residência era construída a dois metros do chão e uma escada era usada para entrar pela janela. Uma vez abrigados, ela era puxada para dentro para evitar que animais entrassem na casa. Outro problema comum pela precariedade do local era o tifo. “Muita gente morria da doença, a bisavó falava de uma vez que foi até Montenegro comprar medicamento, mas que os remédios só fizeram a doença piorar, e a criança morreu”, relata.

Da selva até a parreira

Se a habitação e a plantação para subsistência eram preocupações primordiais, o amor e a nostalgia pela terra de origem fizeram Marco levantar suas três primeiras parreiras de Isabel, uva estadounidense que foi a primeira a se adaptar ao clima e solo da região, ao modo da época: sem arame e com o uso de postes de madeira entrelaçados.

Com o êxito apresentado pela variedade na região e o desenvolvimento de grandes cooperativas, Victor e seu pai começaram a vender o excedente da produção, até finalmente investirem em seus próprios vinhos. “Quase todas as casas aqui tinham uma cantininha e ai surgiram grandes vinícolas que compravam esse vinho. Eles vinham aqui pegar com carroça e levavam para a Riograndense”, lembra.

Em 1946 a marca é registrada, e já no primeiro ano são vendidas 170 garrafas. Aos poucos, o maquinário que se resumia a uma prensa, uma máquina de moer e, pouco mais tarde, a 20 barris de madeira, se tornou em 32 hectares de parreiras. Apesar do sucesso, o respeito pela tradição é visto no cuidado dado a cada cacho. “Temos só maquinário italiano de produção e engarrafamento, mas ainda colho as uvas manualmente. Se quer qualidade, precisa colher com a mão”, exclama.

 

A história da família Brandelli

Bisneto de Marcelino, Ademir é um dos mentores da Aprovale

A história da família Brandelli, de Garibaldi, começa em meio ao Atlântico, no ano de 1887. Se provavelmente a viagem do pequeno povoado de Zévio, província de Verona, até o Brasil foi árdua como a dos demais imigrantes, a principal recordação da travessia, entretanto, é alegre, afinal foi no navio que o jovem Marcelini Brandelli, então com 12 ou 13 anos, conheceu e começou a namorar com Cleonice.

O jovem que deixava sua família na Itália tinha por destino os cafezais de São Paulo, uma vez em terra, no entanto, rumou ao sul na primeira oportunidade, como conta o bisneto Ademir. “Devem ter imaginado que lá era parecido com o norte da Itália, com montanha e frio e imagino que já pensavam que seria uma região propícia para a uva também”, comenta.

“Na Itália, eles não eram proprietários de terra e passavam dificuldade, ou morriam de fome ou se aventuravam deixando tudo para trás para tentar a vida nos lotes aqui. Quando falava da vida lá, o bisavô, emotivo, começava a chorar lembrando das dificuldades, e os filhos que estavam ao redor da mesa começavam a cantar para animar.” Ademir Brandelli

Uma vez estabelecidos em seu lote, começaram a plantar milho, trigo, feijão e batata para subsistência, além de criar vacas e porcos para fazer queijo, manteiga e carne. “Era preciso muita coragem e garra para sobreviver. Não existia dinheiro, tinha que produzir tudo. O bisavô teve 16 filhos. Na mesa eram 18 bocas para alimentar”, destaca. As idas para a cidade para trocar produtos coloniais como salame e queijo por outros como café e açúcar também era atividade comum.

Do consumo até a produção

Se por um lado, a lavoura de alimentos como o milho e a criação de animais eram precisos para a subsistência, a uva era necessária para a alma. “Assim que chegou aqui, meu bisavô já ergueu suas primeiras parreiras para produzir vinho para a família”, conta Ademir.

Da mesma forma como ocorreu com os vizinhos, aos poucos o vinho que era compartilhado na mesa dos Brandelli passou a ser vendido para as grandes vinícolas e cooperativas que surgiram a partir da década de 1930, como a Aurora, Salton, Dreher e a extinta Brasileira de Vinhos. Ainda nos anos 1980, a família resolve investir na qualidade e passa a cultivar viníferas no lugar da uva comum.

A venda de vinhos foi a fonte de renda dos Brandelli até 1990, quando Ademir, pertencente a quarta geração, teve a perspectiva de ir além. “Me formei enólogo para melhorar a propriedade, os vinhedos e com isso os vinhos. Então percebi que como tínhamos uva, vinhedo e propriedade, não faltava nada para fazer uma vinícola. Em 1991 já tínhamos nosso primeiro prédio e primeiras garrafas”, conta.

Nasce o Vale dos Vinhedos

Com a produção das primeiras garrafas, surgiu então a necessidade de buscar compradores.
Percebendo que outros vizinhos tinham a mesma dificuldade, surgiu a ideia de investir na imagem de toda a região como forma de consolidar o que era produzido naquelas terras. “Tínhamos as vinícolas e precisávamos vender o vinho. Sabíamos que sair pelo Brasil vendendo algo desconhecido era arriscado, então resolvemos fazer uma associação, trabalhar o marketing e divulgar a comunidade em conjunto”, narra.

Foi a partir desta iniciativa, que o que era uma dezena de pequenas vinícolas e cantinas, sem nenhum atrativo turístico se tornou, com o tempo, o que hoje conhecemos como Vale dos Vinhedos.

Confira a matéria completa na edição impressa de 5 de janeiro de 2019