Religiosos afirmam que diferentes posições não impedem o diálogo e a vida em comunidade. Foto: Reprodução

Enquanto muitos responsabilizam a religião pelos atentados à vida em diversos países da América, Europa e da Ásia, em Bento Gonçalves, no ano em que cristãos celebram os 500 anos da Reforma Luterana, o momento é de reconciliação, união e diálogo, termos usados com frequência pelas lideranças religiosas locais. Representantes das igrejas Luterana, Metodista, Assembleia de Deus, Primeira Igreja Batista e Católica, se unem no dia 28, a partir das 19h30min para uma celebração ecumênica e caminhada luminosa para comemorar a passagem da data, mas, sobretudo, buscar o diálogo com outras religiões, separados após a Reforma.

O convívio entre as igrejas vem avançando ao longo do tempo, a fim de superar inúmeros desentendimentos e separações ao longo dos séculos e estreitar suas relações. Lideranças religiosas acreditam que só assim será possível estabelecer um respeito incondicional ao pluralismo religioso e o combate à intolerância.

De acordo com o pastor da Primeira Igreja Batista, Edson Leal, a comunidade está inserida em Bento Gonçalves desde o ano de 1965. “São famílias descendentes de italianos e alemães oriundas de outras regiões do estado, que vêm nesta cidade a oportunidade de uma vida mais próspera. Trazem consigo, junto a bagagem, sua fé Reformada. Desde o princípio o propósito é o de levar pessoas a um relacionamento intenso com Deus, amar e servir ao próximo, e fazer Jesus conhecido de todos”, explica.

Conforme Leal, a religião é uma herança das diversas culturas trazidas ao Brasil e deve ser respeitada da mesma forma que os demais elementos culturais. “A Reforma Protestante foi um feito memorável, impressionante. O mundo hoje ainda ecoa suas consequências, basta observar a fé que se professa nos países mais desenvolvidos na atualidade. Mesmo que nossa sociedade não se lembre ou não se interesse tanto pelo que a Reforma fez e defendeu, sua maneira de viver (liberdade, educação, política, economia) tem dívida com os ventos renovadores da fé protestante. Há muito o que se contar e relembrar. Diferente como algumas pessoas pensam, a Reforma não celebra um cisma, uma separação”, afirma.

O pastor da Primeira Igreja Batista salienta ainda que, nos dias de hoje, a unidade dos cristãos é uma necessidade entre os povos, para diminuir as competições e guerras e ampliar a disseminação do evangelho. “A promoção da unidade dos cristãos, mais do que uma necessidade é a vontade do Pai a todos seus filhos. A unidade dos cristãos não é um ecumenismo de ‘marcha ré’, não obriga ninguém a renegar a própria história de fé. A comunidade cristã, com sua pluralidade, é chamada a não competir, mas colaborar”, enfatiza.

Há 61 anos inserida na Capital do Vinho, a Igreja Evangélica Assembleia de Deus possui congregações em vários bairros da cidade. De acordo com o pastor Eliezer Morais, a missão da denominação cristã tem o propósito de pregar o evangelho de esperança e salvação, baseado na Bíblia Sagrada e nos princípios ensinados por Jesus. Com a Reforma, segundo Morais, a humanidade teve o acesso a Bíblia Sagrada e com isso, a liberdade de praticar o evangelho. “Além disso, a Reforma abriu o caminho para o desenvolvimento social, político e econômico da Europa, e, por consequência, quando os imigrantes protestantes vieram para o Brasil, trouxeram esse legado para nossa nação”, explica.

“Na verdade, o trauma ainda traz feridas abertas”

As repercussões da Reforma no mundo e dentro da Igreja Católica foram imensuráveis. Quem afirma é o reitor do Seminário Maior São José, da Diocese de Caxias do Sul, padre Leonardo Lucian Dall Osto. Para ele as consequências dessa separação, iniciada por Martinho Lutero, não podiam ser avaliadas naquele momento. “Pode-se dizer que a Igreja Católica, nos primórdios da reforma, não conseguiu mensurar nem a gravidade nem a extensão do que estava acontecendo. Infelizmente, a hierarquia da Igreja, em grande parte estava envolvida em assuntos políticos e econômicos. O então Papa Leão X era um homem espiritualmente despreparado para exercer o ministério petrino. Lutero ventilou a possibilidade de um Concílio, mas não foi ouvido”, explica.

Reforma foi um momento perturbado para a Igreja Católica. Foto: Reprodução

De acordo com Osto, os católicos precisam encarar a história como realismo. Segundo ele, a reforma foi traumática; ela não aconteceu num diálogo ameno ao redor de uma mesa, mas, sim, com conflitos. “Na verdade, o trauma ainda traz feridas abertas. Toda separação é traumática, pois exige uma nova forma de entender o mundo e de viver em um mundo ressignificado. Evidente que a reforma também exigiu que a Igreja Católica repensasse muitas de suas práticas, especialmente sua exagerada mundanização e que fizesse um exame de consciência profundo. Todo trauma deixa lesões, mas impele a agir com mais prudência e reflexão”, pontua.

O sacerdote acredita que nos dias de hoje, é preciso olhar para frente e buscar o diálogo. “A Igreja procura entender os eventos da história dentro de seu contexto. Não mais se culpa Lutero e se tenta esconder as misérias que existiam na Igreja naquele período. A Igreja pensa que os reformadores, em geral, eram homens idôneos, preocupados com o anúncio do Evangelho. Talvez a forma como foi conduzido pudesse ter sido diferente se houvesse mais caridade. Infelizmente não adianta jogar pedras no passado. A grande preocupação da Igreja Católica, especialmente a partir do Concílio Vaticano II é buscar estreitar laços com os irmãos separados, recordando que o que nos une, que é a fé em Jesus, é muito mais forte do que aquilo que nos separa”, acredita.

Cristãos em unidade

A celebração que deve ocorrer na Praça Vico Barbieri é considerada histórica, afinal, além das igrejas que já possuem um diálogo íntimo com os católicos, como a Igreja Metodista e a Luterana, outras duas denominações, com menor tempo de fundação (Assembleia de Deus e Primeira Igreja Batista), deve reforçar o sentido do encontro: mais do que a simples convivência, a integração e o diálogo para a superação de conflitos entre as instituições que representam as variadas religiões no país são meios para a superação de entraves históricos.

Conforme a pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Paula Naegele, tudo é resultado do esforço de alguns líderes das denominações cristãs que hoje, se reúnem e dialogam naquilo que lhes são comuns, respeitando as diferenças. “Como Igreja buscamos estabelecer o diálogo, e em Bento Gonçalves, recentemente rearticulamos o Grupo Ecumênico. Buscamos caminhar em conjunto, onde possamos fazer a diferença em nossa sociedade. Nos envolvemos e testemunhamos no amor, na misericórdia, que transforma as pessoas e o seu entorno. Este diálogo precisa ser ampliado, e entendido como uma oportunidade de crescimento e partilha. Onde existe respeito e comunhão, o Ecumenismo acontece”, garante.

Diálogo é positivo

De acordo com o pesquisador bolsista da Capes e professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUCRS, Leandro Luis Bedin Fontana, a reforma iniciada por Lutero teve um papel fundamental na mudança da mentalidade do homem moderno e hoje, a união entre as doutrinas é fundamental para ampliar o diálogo. “Tecnicamente, a teologia tem distinguido entre o diálogo inter-religioso e o ecumênico, por tratar-se de esferas distintas. Busca-se uma maior aproximação entre as grandes religiões. No ecumenismo busca-se um diálogo mais intenso entre as diversas confissões cristãs. Felizmente, em ambas essas frentes, o diálogo tem avançado.

Outro papel fundamental dessa aproximação, segundo Fontana, é o estabelecimento de um respeito incondicional ao pluralismo religioso e o combate à intolerância. “Na minha opinião, no contexto atual, o próprio princípio da tolerância, herança preciosa do Iluminismo, parece não ser suficiente. Tolerância pode significar, simplesmente, suportar o outro, numa atitude passiva. Num mundo plural, onde todas as igrejas e religiões procuram, a todo custo, (re)afirmar a própria identidade, a maior tentação é a de autoafirmar-se à custa do outro, em oposição ao irmão”, explica.

Segundo Fontana, a participação de diversas igrejas, com doutrinas diferentes, em uma cidade predominantemente católica, como em Bento Gonçalves pode ser considerado um avanço, no intuito de repensar suas origens e identidades. “As Igrejas Luterana, Metodista e Batista pertencem a ambas as instituições. Mas a Assembleia de Deus tem demonstrado uma grande abertura para um diálogo nesses moldes, nos últimos anos está envolvida ativamente, por exemplo, nos diálogos bilaterais entre Luteranos e Pentecostais iniciados no ano passado por iniciativa da Federação Luterana Mundial. De fato, a celebração dos 500 anos da Reforma têm sido uma ocasião muito propícia tanto para as igrejas luteranas, reformadas, pentecostais, repensarem as suas origens e as suas identidades, como para a própria Igreja Católica repensar a sua relação com essas outras igrejas-irmãs.”, acredita.

Lutero e o desejo em reformar a Igreja

A Reforma Religiosa, também chamada de Reforma Protestante foi um movimento espiritual, social e político que influenciou na formação dos Estados modernos e fez surgir novas Igrejas Cristãs. Foi também o movimento que rompeu a unidade do cristianismo centrado pela Igreja de Roma. Esse movimento é parte das grandes transformações econômicas, sociais, culturais e políticas ocorridas na Europa nos séculos XV e XVI, que enfraqueceram a Igreja permitindo o surgimento de novas doutrinas religiosas.

Martinho Lutero foi um dos principais reformistas. Sua indignação com os abusos do clero acabaram por levá-lo à excomunhão e à perseguição. As lutas religiosas na região onde ele vivia acabaram por criar uma nova Igreja, a Luterana. Vendo os abusos por parte da igreja Católica, o monge agostiniano elaborou 95 teses e afixou-as na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, em 1517. A maioria era contra as indulgências. Apoiado pela nobreza alemã, Lutero pôde divulgar suas ideias, calcada em dois princípios que se constituiriam no núcleo de sua doutrina: A Salvação somente pela fé e não pelas práticas religiosas e a Inutilidade dos Mediadores (Clero).

Em 1520, Lutero é excomungado. Ele queima publicamente a carta do papa (Bula papal), traduz a Bíblia para o Alemão, casa-se com uma ex-freira, fica abrigado na Saxônia. Para ele, o mais importante era a fé e a centralização do culto na leitura das Escrituras pelos próprios fiéis, preservando apenas dois sacramentos: batismo e eucaristia; substituindo o latim pelo idioma alemão nos cultos religiosos; e, rejeitou o celibato obrigatório dos sacerdotes.
No Brasil, a doutrina luterana chegou por volta de 1554. A organização comunitária começou apenas na época imperial. Havia, porém, grandes restrições. As dificuldades também se refletiam na vida civil e familiar. Dentro deste cenário surgiram e se desenvolveram as primeiras comunidades. Em 3 de maio de 1824 um grupo de imigrantes alemães evangélicos chegou a Nova Friburgo/RJ e um outro aportou em São Leopoldo/RS, em 25 de julho do mesmo ano.

O desenvolvimento da igreja evangélica acontece junto com a chegada de novos imigrantes, que acabaram fixando moradia nos três estados do Sul do Brasil. Mas houve também grupos menores que foram estabelecidos em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e no Espírito Santo.

Esse processo perdura até 1864 quando começa, de forma mais regular, a chegada de pastores da Alemanha. Até o final do século 19, haviam sido criadas inúmeras comunidades espalhadas nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo.

Entrevista com a pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil, Paula Naegele.

Jornal Semanário: Como as igrejas podem estabelecer um respeito incondicional ao pluralismo religioso e o combate à intolerância, principalmente em tempos de debates acalorados em redes sociais…

Paula: Como Igreja, buscamos testemunhar o amor e a misericórdia de Deus em todas as ocasiões e espaços (público e virtual). Somos lembrados que o amor de Deus nos desafia através do compromisso cristão, com o outro e a outra, respeitosamente. Só existe dialogo, quando o respeito pela opinião alheia nos acompanha. O respeito é necessário, quando falamos e nos envolvemos neste pluralismo religioso. Cada Comunidade ou Igreja, tem por base a sua confessionalidade, e isso precisa ser respeitado, afinal está é a essencia de cada denominação.

Qual a importância da Reforma para a sociedade como um todo?

Inicialmente Lutero tinha e aprendera sobre uma imagem de um Deus severo, irado, que precisava ser conquistado diariamente. Ele tinha medo e pavor de Deus, medo do seu julgamento, medo da morte. Europa do século XVI estava numa grande crise. Guerras, mortes por epidemias, fome, seca. Uma época muito difícil de se viver. E isso tudo era entendido como castigo de Deus. Deus sempre estava irado com o seu povo e, por isso, os castigava com seus terrores. Assim Deus era visto na época de Lutero. E, por isso, surgem perguntas que aterrorizavam Lutero e as pessoas: como agradar a esse Deus furioso e como alcançar a salvação? Essas perguntas e essa simples contextualização podem ser chaves para entender o movimento da Reforma. Vejamos.

No dia 31 de outubro celebramos e relembramos o dia em que o monge Martinho Lutero afixou as 95 teses na porta de igreja de Wittenberg e, assim, propôs algumas mudanças e reformas contra abusos cometidos pela igreja de sua época.

As críticas e denúncias do reformador nasceram de suas próprias angústias: como possa agradar a Deus e como posso alcançar a salvação? As respostas a essas perguntas foram acalmadas quando ele redescobriu nas Escrituras Sagradas a face amorosa de Deus, revelada em Jesus Cristo, aquele que vem a nós para se encontrar conosco ali onde estamos, em nossas dores e angústias e fazer delas coisas novas. É assim que a angústia de Lutero se vai e, com a sua ida, surgem as críticas, bem como novas velhas propostas, para uma Igreja que tenha CRISTO no centro de sua doutrina e pregação.

Assim, a Reforma tenta reaproximar as pessoas e a Igreja dessa imagem, dessa face amorosa e graciosa de Deus e, como consequência disso, acabar com a exploração feita em seu nome.
A imagem de Deus Pai, revelada em Jesus, acaba com a ideia de ter medo de Deus e nos coloca em seus braços amorosos como seus filhos e filhas amadas. É Deus que vem a mim e não eu que vou até ele. Não há escravidão que suporte isso, não há medo que suporte diante dessa imagem de Deus. Não há exploração que resista frente a esse Deus amoroso redescoberto por Lutero. Isso quebra os grilhões da exploração e nos coloca diante da face amorosa de Deus, Jesus Cristo como filhos e filhas; e não como escravos e escravas.

Com isso, não vamos mais ao culto ou para nos encontramos com um Deus furioso, tremendo de medo dele. Vamos ao culto para nos encontrarmos com um Deus amoroso, pregado na cruz, que deu a vida para nos salvar. E isso muda tudo. Muda a forma de viver a fé e a forma de pensar sobre Deus, e isso é libertador. E nos faz amar e servir ao Deus verdadeiro, revelado em Cristo, e não ao deus do pavor, do medo e da punição que por muito tempo nos foi ensinado. Em consequência disso, somos livres para agir em benefício da libertação de outras pessoas. Essa é a nossa liberdade cristã, essa é a reforma constante do nosso jeito der ser de Igreja de Jesus Cristo.

O que o podemos esperar para o futuro das religiões, principalmente no Brasil, onde há um emaranhado de Igrejas? O diálogo deverá ser ampliado?

Como Igreja buscamos estabelecer o diálogo, e em Bento Gonçalves, recentemente rearticulamos o Grupo Ecumênico. Este grupo busca uma caminhada conjunta, onde possamos fazer a diferença em nossa sociedade. Buscamos nos envolver e testemunhar, do amor, da misericórdia, que transforma as pessoas e o seu entorno. Este diálogo precisa ser ampliado, e entendido como uma oportunidade de crescimento e partilha. Crescimento este que não visa buscar novos membros nas comunidades/denominações alheias, mas sim, um espaço de convívio e comunhão. Onde existe respeito e comunhão, o Ecumenismo acontece! Por este motivo, iremos celebrar em conjunto no dia 28 de Outubro na Praça Vico, lembrando do nosso compromisso com o outro/a.

Entrevista com Leandro Luis Bedin Fontana, pesquisador bolsista da CAPES e professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUCRS.

Jornal Semanário: O diálogo entre as religiões, aparentemente tem avançado muito em busca de superação dos inúmeros reveses ocorridos em suas relações. Como a teologia vê essa aproximação? Isso pode ser considerado um avanço para o diálogo entre as religiões?

Fontana: Sim, pode-se certamente afirmar que as últimas décadas, a começar pela segunda metade do século XX, inauguram uma nova era no que diz respeito ao diálogo e ao mútuo reconhecimento entre as religiões. Tecnicamente, a teologia tem distinguido entre o diálogo inter-religioso e o diálogo ecumênico, por tratar-se de esferas distintas de diálogo. Ao passo que no assim chamado diálogo inter-religioso busca-se uma maior aproximação entre as grandes religiões como, por exemplo, entre cristianismo, judaísmo, islã, hinduísmo, budismo, etc., no ecumenismo busca-se um diálogo mais intenso entre as diversas confissões cristãs (Católica, Ortodoxa, Luterana, Calvinista, Anglicana etc.). Felizmente, em ambas essas frentes, o diálogo tem avançado.

Cito alguns exemplos para ilustrar essa afirmação. E o faço a partir da experiência católica, tradição à qual pertenço e conheço mais profundamente. Em 1965, ao final do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica promulga dois documentos importantes: Nostra aetate, sobre o diálogo inter-religioso, e Unitatis redintegratio, sobre o ecumenismo. Em 1986, por iniciativa do então papa João Paulo II, realizou-se uma jornada mundial de oração pela paz. Nessa ocasião, enquanto o mundo polarizava-se sempre mais pela Guerra Fria, líderes de diversas religiões e confissões cristãs reuniram-se para orar pela paz no mundo. Esse encontro repetiu-se em 2011, com Bento XVI, e em 2016, com o papa Francisco, reunindo cerca de 450 representantes de instituições religiosas do mundo inteiro. Em 1948, a criação ‘oficial’ do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), uma iniciativa mundial com vistas à unidade dos cristãos. Naquele ano, contava 147 igrejas-membro, e hoje, com 348, o que demonstra um caminho progressivo de aproximação. Por fim, a criação do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), em Porto Alegre, em 1982, com o mesmo intuito do CMI.

Para a teologia, esses acontecimentos são sinais concretos de novas relação que iniciam a estabelecer-se entre as religiões e as igrejas. Não mais baseadas sobre preconceitos e ‘meias-verdades’, mas baseadas na busca pela Verdade. Essa Verdade só pode ser construída mediante um diálogo aberto e sincero entre as religiões e igrejas, mas não deixando de incluir as ciências e a sociedade civil (secular). Ao meu ver, a teologia do século XXI é convocada a exercer um papel imprescindível nessa difícil mediação.

Como as igrejas podem estabelecer um respeito incondicional ao pluralismo religioso e o combate à intolerância, principalmente em tempos de debates acalorados em redes sociais…

A grande promessa da internet e, mais recentemente, das redes sociais sempre foi a de abrir fronteiras unir a humanidade. O que se constata, no entanto, é, infelizmente, o contrário. Criam-se milhares de grupos exclusivos e excludentes que tentam construir a própria ‘identidade’ à custa da difamação ‘dos outros’. Na maioria desses grupos, opera-se, com meias verdades e mesmo mentiras (fake news), dissimulando ódio, racismo, violência etc. Nesse contexto, as igrejas e religiões, testemunhas que são da presença do absoluto nesse mundo, têm o dever de não ceder a essas tentações modernas de segregação.

Na minha opinião, no contexto atual, o próprio princípio da tolerância, herança preciosa do Iluminismo, parece não ser suficiente. Tolerância pode significar, simplesmente, tolerar, suportar o outro, numa atitude passiva. Num mundo plural, onde todas as igrejas e religiões procuram, a todo custo, (re)afirmar a própria identidade, a maior tentação é a de autoafirmar-se à custa do outro, em oposição ao outro. É preciso, talvez, (re)descobrir o que disse e demonstrou com muita plausibilidade o grande filósofo francês Paul Ricoeur: “O atalho mais curto para se chegar às profundezas de si mesmo é o outro.”

Em Bento Gonçalves, uma cidade de predominância Católica, as Igrejas Luterana, Metodista, consideradas “irmãs” estarão juntas num evento ecumênico, para celebrar os 500 anos da Reforma. No entanto, o que chamou a atenção será a participação das Igrejas Assembleia de Deus e Primeira Igreja Batista, ou seja, “igrejas fundadas há pouco tempo”, aderiram a essa celebração. Como podemos ver essa aproximação?

Essa aproximação deve ser compreendida no contexto das duas instituições mencionadas anteriormente: o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC). As Igrejas Luterana, Metodista e Batista pertencem a ambas as instituições. Mas a Assembleia de Deus tem demonstrado uma grande abertura para um diálogo nesses moldes, nos últimos anos está envolvida ativamente, por exemplo, nos diálogos bilaterais entre Luteranos e Pentecostais iniciados no ano passado por iniciativa da Federação Luterana Mundial. De fato, a celebração dos 500 anos da Reforma têm sido uma ocasião muito propícia tanto para as igrejas luteranas, reformadas, pentecostais, repensarem as suas origens e as suas identidades, como para a própria Igreja Católica repensar a sua relação com essas outras igrejas-irmãs. O fato de o Papa Francisco ter participado da cerimônia em comemoração dos 500 anos da Reforma Protestante em Lund, no ano passado, foi um gesto muito significativo para essa caminhada ecumênica.

O que o podemos esperar para o futuro das religiões, principalmente no Brasil, onde há um emaranhado de Igrejas?

Em primeiro lugar, as igrejas precisam descobrir elas mesmas o valor dessa atitude de abertura e diálogo. E elas devem fazê-lo não apenas ‘pelos outros’, mas para o próprio bem. É através do diálogo que elas podem compreender-se melhor e esclarecer mal-entendidos históricos. A instituição de um Estado democrático secular é um grande capital para a sociedade brasileira no sentido de garantir a igualdade jurídica e o respeito incondicional entre as diversas igrejas e religiões. É preciso zelar para que essa conquista da sociedade civil não venha a ruir. É preciso, portanto, acompanhar com cautela certas articulações entre parlamentares em vista de interesses de determinados grupos religiosos em detrimento de outros. Evidentemente, atitudes de discriminação contra membros de outras religiões brasileiras, como se tem assistido recentemente, devem ser reprovadas com veemência, sem exceções. Parece difícil acreditar que haja algum caminho que verdadeiramente conduza a Deus, se este implica ou mesmo incita a discriminação, o ódio e a hostilidade para com outros seres humanos.

Entrevista com padre Leonardo Lucian Dall Osto, Reitor do Seminário Maior São José, da Diocese de Caxias do Sul.

Jornal Semanário: Como a Igreja Católica, naquele período, se posicionou em relação a Reforma?

Dall Osto: Pode-se dizer que a Igreja Católica, nos primórdios da reforma, não conseguiu mensurar nem a gravidade nem a extensão do que estava acontecendo. Infelizmente, a hierarquia da Igreja, em grande parte estava envolvida em assuntos políticos e econômicos.  O então Papa Leão X era um homem espiritualmente despreparado para exercer o ministério petrino. Lutero ventilou a possibilidade de um Concílio, mas não foi ouvido. A cisão aconteceu em 1517 quando Lutero fixa na porta da igreja de Wittenberg, 95 teses contra o mau uso das indulgências. Essas teses acabaram por questionar o fundamento da doutrina das indulgências. Em 1521 o papa Leão X o excomungou através da bula Decet Romanum Pontificem. A resposta da Igreja só virá na metade do século quando Paulo III convoca o Concílio de Trento (1545-1563), que se tornará ao mesmo tempo uma “reforma católica” e uma “contra reforma protestante”.

Quais as principais consequências dessa separação iniciada por Martinho Lutero? Até onde essa ruptura foi prejudicial à Igreja Católica?

Toda a separação significa uma diminuição das forças e, no caso do cristianismo, um enfraquecimento do testemunho de unidade na fé em Cristo. Jesus nos relata o Evangelho de João, desejou que os seus discípulos, fossem “um como ele e o Pai são um” (Jo 17,21). A divisão conhecida como “cisma” entre católicos e reformados, também chamados “protestantes” ainda hoje é um escândalo para os não cristãos. Alguns historiadores afirma que “reforma” não é o termo ideal, mas sim “revolução”. Isso se dá pelo fato de que muitas reformas aconteceram no seio da Igreja ao longo de dois mil anos, mas nunca se rompeu a unidade. No caso da reforma do século XVI a unidade foi rompida e outra estrutura doutrinal elaborada, logo, poderia ser uma revolução dentro do cristianismo. Mesmo as Igrejas orientais, que se separaram da Igreja Católica em 1054 não se permitiram mudar a doutrina. As diferenças doutrinais entre católicos e reformados e entre os próprios reformados, estabeleceu um mosaico de crenças que deixam desnorteados os próprios cristãos.

Podemos dizer que a Reforma foi um momento traumático?

Com toda certeza foi. Na verdade o trauma ainda traz feridas abertas. Toda separação é traumática, pois exige uma nova forma de entender o mundo e de viver em um mundo ressignificado. Evidente que a reforma também exigiu que a Igreja Católica repensasse muitas de suas práticas, especialmente sua exagerada mundanização e que fizesse um exame de consciência profundo. Toda trauma deixa lesões, mas impele a agir com mais prudência e reflexão.

Hoje, passados 500 anos, como a Igreja Católica vê esse fato?

A Igreja procura entender os eventos da história dentro de seu contexto. Não mais se culpa Lutero e se tenta esconder as misérias que existiam na Igreja naquele período. A Igreja pensa que os reformadores, em geral, eram homens idôneos, preocupados com o anúncio do Evangelho. Talvez a forma como tudo foi conduzido pudesse ter sido diferente se houvesse mais caridade. Infelizmente não adianta jogar pedras no passado. A grande preocupação da Igreja Católica, especialmente a partir do Concílio Vaticano II é buscar estreitar laços com os irmãos separados, recordando que o que nos une, que é a fé em Jesus, é muito mais forte do que aquilo que nos separa.

Vemos diversos gestos de unidade entre as igrejas. O ecumenismo tende a se fortalecer nos próximos anos?

Não parece ser um momento onde o movimento ecumênico esteja em plena força. Em torno de quarenta anos atrás as esperanças eram mais vivas e o ecumenismo mais forte. Hoje, infelizmente, vivemos tempos onde os fundamentalismos estão ganhando força, tanto dentro da Igreja Católica como das igrejas evangélicas.  Não tenho com responder se o movimento tende a se fortalecer. Sei, no entanto, que não podemos deixar que esse movimento morra. É desejo de Cristo que a sua Igreja seja uma só família.

Em Bento Gonçalves haverá uma celebração com a participação de líderes religiosos das igrejas Luterana, Metodista, Católica, Assembleia de Deus e Primeira Igreja Batista. Sabe-se que as primeiras igrejas possuem já um diálogo com a Igreja Católica. No entanto, as duas últimas citadas são uma “novidade”. Como o senhor vê isso? É um avanço?

Creio que existem situações localizadas de ecumenismo que estão dando muito certo. Se as diversas igrejas se aproximam, isso é ótimo, significa que o rancor está cedendo lugar ao perdão e à reconciliação. Evidente, precisamos aceitar que diferenças doutrinais existem e são consistentes. No entanto o agir cristão deve ser pautado pelo amor. Se não amarmos nem mesmo os próprios irmãos separados, somos dignos do nome de “cristãos”?

Filme Lutero (2003)

Confira o filme que retrata a história de Martinho Lutero. Após quase ser atingido por um raio, Martim Lutero (Joseph Fiennes) acredita ter recebido um chamado. Ele se junta ao monastério, mas logo fica atormentado com as práticas adotadas pela Igreja Católica na época. Após pregar em uma igreja suas 95 teses, Lutero passa a ser perseguido. Pressionado para que se redima publicamente, Lutero se recusa a negar suas teses e desafia a Igreja Católica a provar que elas estejam erradas e contradigam o que prega a Bíblia. Excomungado, Lutero foge e inicia sua batalha para mostrar que seus ideais estão corretos e que eles permitem o acesso de todas as pessoas a Deus.