Apesar da destruição cultural e dos hábitos que se perderam ao longo do tempo, a língua kaigang ainda é amplamente preservada pelo povo caingangue. Já outros costumes, como caça, pesca e vida no mato são arrastados por anos de esquecimento e hoje tornaram-se impraticáveis por esses grupos indígenas que vivem às margens das cidades.

O debate sobre a preservação cultural vem à tona nesta quarta-feira, 19, quando é comemorado o Dia do Índio. A data foi instituída por Getúlio Vargas, em 1943, mas não tem muito significado para os cerca de 15 caingangues que vivem em Bento Gonçalves, assentados em um terreno baldio, no bairro São Roque, com algumas caixas d’água e lonas que servem como casa.

Nelinho Paulo tem 38 anos, é natural de Charrua, no Rio Grande do Sul e responde como liderança do grupo instalado no município. Enquanto conversa com os demais membros, utiliza do idioma kaigang com naturalidade.
Ele conta que os índios gostam de viver livres e os espaços, hoje destinados às reservas ou cedidos pelos poderes instituídos, não respondem a essa necessidade. “Nós temos que ficar, mas gostaríamos de viver num lugar espaçoso”, expõe. Outro problema pontuado por Paulo é a dificuldade de preservar a cultura em meio às cidades. A caça, por exemplo, é impraticável. “Eu gostaria de caçar, mas se eu fizer isso sou preso”, lamenta.

O líder caingangue conta que os costumes estão se perdendo ainda mais entre as pessoas com menos idade, das novas gerações. Os filhos de índios não querem andar de pés descalços e comer comidas típicas. “Nós nos acostumamos com o homem branco, por isso a atual geração é diferente”, afirma Paulo, que relata ter vivido de caça no passado.

Sobrevivência cultural

O artesanato ainda é um elemento representativo da cultura indígena, porém, os caingangues encontram dificuldades em vender os artefatos e serem aceitos nas cidades para a comercialização dos produtos. Segundo Ildo Ferreira, de 42 anos, é comum que sejam instituídas leis que restrinjam a circulação de índios que vendem produtos em espaços públicos. “Nós temos que viajar bastante entre uma cidade e outra para vender”, conta. Em Bento Gonçalves não houve restrições, segundo Ferreira.

Na sua opinião, o homem branco se encantava com o artesanato indígena antigamente, o que facilitava as vendas. Já hoje, explica Ferreira, todo mundo aprendeu a fazer os produtos que os índios caingangues fazem. “Aí o homem branco não compra”, lamenta.

Mesmo com as dificuldades de inserção social e sobrevivência, o povo caingangue busca preservar a língua. Ferreira conta que tem dois filhos pequenos, que estudaram na escola indígena em Farroupilha até a quarta série, para aprender a língua do seu povo. “Tem professores capacitados para isso, acredito que temos que preservar nossa cultura apesar de tudo que perdemos. As crianças aprenderam falar e escrever em kaigang”, conta.

Helena é mãe de Nelinho Paulo, tem 70 anos, é natural de Tenente Portela e fala poucas palavras em português. Enquanto prepara uma madeira com penas para compôr o artesanato, lembra que no passado se alimentavam de folhas do mato e de pixé, uma espécie de milho torrado e moído com açúcar. “Agora a gente aprendeu a comer comida de branco”, afirma.

Para antropólogo, manter a língua é o mais importante

Embora parte da cultura caingangue tenha sido soterrada pelo tempo e pela colonização e catequização, por  meio de um processo que já perdura há pelo menos três séculos, ainda é possível recuperar costumes do grupo  através da prática da língua kaingang, conforme afirma o antropólogo Rafael José dos Santos, da Universidade de Caxias do Sul (UCS).  Porém, ele considera que o fato de morarem próximos às cidades, ou mesmo dentro delas, implica em transformações culturais.

No caso da aldeia de Farroupilha, há uma escola de ensino fundamental com uma professora caingangue, que ensina kaingang para as crianças da aldeia.  Mesmo que exista algumas escolas voltadas a eles, os índices de analfabetismo entre indígenas no Brasil é ainda três vezes maior do que o total geral, de acordo com dados do IBGE.

Santos explica que a língua, para a antropologia, é muito mais do que um meio de comunicação, mas uma forma de organizar e interpretar o mundo. “Tudo pode se transformar, mas se perder a língua, a cultura também acaba perdida”, enfatiza.  

Ele salienta ainda que as regiões Centro-Oeste e Nordeste estão mais avançadas, neste sentido, do que a região Sul, uma vez que há mais escolas específicas para povos indígenas. Além disso, na opinião do antropólogo, as políticas públicas voltadas aos povos indígenas nas áreas de saúde e também estão melhor desenvolvidas. 

 

Índio não é personagem folclórico

No ponto de vista do antropólogo,  um dos principais problemas da relação do homem branco com o índio é a total falta de informação. Ele entende que a solução parte somente da educação, como forma de ensinar para as crianças o que é o outro. “A alternativa passa por  transmitir a cultura dos povos nas escolas. Mas isso não pode acontecer só no Dia do Índio e nem o índio ser tratado como personagem folclórico. Ele existe, está aí”, argumenta. 

Além disso, os povos originários estão sujeitos a mesma legislação do que o homem branco, visto que a lei não prevê discernimento de grupos. Segundo Santos, resolver questões do gênero não é uma tarefa fácil. “Temos ONGs que tentam estabelecer o uso de práticas de manejo ambiental, para resolver o problema da caça que é proibida, por exemplo”, pontua.

Sobre a discussão da religiosidade,  o antropólogo afirma os séculos de catequização pelo qual os caingangues passaram acabaram por influenciar nas crenças. “Nós não temos como impor a alguém, ou a um grupo, a prática de uma religião, mas é importante que eles aprendem na escola sobre  a religiosidade do próprio povo”, comenta.

 

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