PEC 181, que criminaliza o aborto em qualquer situação, foi aprovada na Câmara e aguarda decisão do plenário

No intervalo de uma semana, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 181, de 2015, cujo texto final prevê o direito à vida desde a concepção, ocupou a agenda e os microfones da Câmara de Deputados virou tema de debates polarizados nas redes sociais e chegou às ruas do país na forma de protestos de centenas de mulheres contrárias à mudança na legislação. A proposta foi aprovada em uma comissão da Casa e deve seguir para o plenário. Foram 18 votos a favor — todos de deputados homens — e apenas um contra, da única mulher com direito a votar, a deputada Erika Kokay (PT-DF).

PEC 181, que criminaliza o aborto em qualquer situação, foi aprovada na Câmara. Foto: Reprodução

Originalmente, a PEC 181, de autoria do senador Aécio Neves (PSDB-MG), apenas estendia a licença-maternidade de 120 para até 240 dias no caso de parto prematuro, mas o texto sofreu alterações. O relatório do deputado Jorge Mudalen (DEM-SP), aprovado na comissão especial que debateu a proposta, altera o texto do art. 5º da Constituição Federal e propõe a garantia da inviolabilidade do direito à vida desde a concepção.

A PEC não acrescenta textualmente à Constituição a proibição de aborto em casos hoje considerados legais pelo Código Penal e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como a gravidez fruto de estupro, a gestação de feto anencéfalo e a que representa risco para a mãe. Por outro lado, segundo juristas e advogados, a mudança pode afetar a interpretação jurídica brasileira para esses casos, já que abre margem para a possibilidade de juízes em casos individuais decidirem, por exemplo, que o direito à vida desde a concepção se sobrepõe ao que está previsto no Código Penal.

A batalha

A batalha pela regulação do direito ao aborto tem uma história mais longa do que a sua visibilidade pública. Desde a Assembleia Nacional Constituinte, a Igreja Católica pressiona pela inclusão da proteção da vida desde a concepção na Constituição. Nesses 30 anos que nos separam da Constituinte, movimentos pró e anti aborto, por meio de aliados no Congresso, apresentaram diversas tentativas de alteração da regulação estabelecida pelo Código Penal de 1940, tanto ampliando quanto restringindo-a.

O movimento pró-aborto avançou com a edição de normas técnicas que permitissem a efetivação do acesso ao aborto legal. A mobilização vem desde o Governo Fernando Henrique Cardoso, mas foi especialmente no primeiro Governo de Lula que a regulação avançou. Foi da articulação entre mobilização pró-aborto e o Executivo que saiu a proposta de formação de uma Comissão formada por membros do Executivo, Legislativo e sociedade civil para rever a criminalização do aborto. Surgido de dentro do Congresso Nacional às vésperas das eleições de 2006, o Movimento Nacional Brasil Sem Aborto, passou a conectar em nível nacional, nas marchas anuais em defesa da vida, pequenos grupos pró-vida locais, que foram sendo criadas ao longo da década de 90.

A cada eleição, a representação de deputados evangélicos aumenta. A bancada Pró-vida e Pró-família, criada também em 2006, é renovada a cada legislatura e têm pressionado pela aprovação de projetos que restringem os direitos reprodutivos das mulheres.

O Pastor Márcio Gomes, salienta que a Igreja Metodista, reafirma-se contrária à prática do aborto, bem como, se posiciona que a vida é um dom de Deus e ela precisa ser preservada e dignificada desde a sua concepção até à morte. “Por isso, consideramos de extrema importância proporcionar à mulher uma educação sexual, renda familiar justa, acesso ao controle de natalidade (não abortivo) e suporte digno ao ato maravilhoso de dar à luz”, observa. Entretanto, em contrapartida, ele afirma que: “pressupomos o aborto em caso extremo, quando estiver em jogo a vida da mãe, pois, esta deve ter condições para ter mais filhos ou filhas e deve, também, ter chance de cuidar de filhos ou filhas já existentes e que dela dependem para sua sobrevivência”.

Para Ricardo Fontana, pároco da Igreja Santo Antônio, a preocupação maior, tratando-se de igreja, é com a vida. “Tudo é uma questão de onde começa e onde termina a vida. O grande princípio é que ela deve ser defendida do início ao fim. Se o ser humano tem início em sua concepção, quando o óvulo e o espermatozoide se encontram, então ela defende a vida desde ali, até as possibilidades de onde ela poderá chegar com vida, sem defender a eutanásia e a distásia”, garante.

A visão da igreja

Pastor Márcio Gomes

“A vida é dom de Deus, esse ponto é recorrente quando se trata da temática ‘aborto’. Descriminalizar (não considerar crime) o aborto é dizer que é mais fácil tratar as consequências que atuar na origem dos males. Se mulheres são donas do seu corpo e da sua vontade (e o são, segundo a Bíblia), é preciso garantir-lhes educação sexual, renda familiar justa, acesso ao controle de natalidade (não abortivo) e suporte digno ao ato maravilhoso de “dar `a luz”. O aborto não pode ser resolução para a mulher que não se vê em condições de ter uma criança e criá-la. . Esta atitude favorece o status quo de sistemas injustos que não priorizam vida digna às pessoas. Reafirmamos dizendo que: “Que o aborto seja considerado uma prática contrária à consciência cristã, pois, é uma espécie de infanticídio. Esta é uma posição clara, sabendo-se que uma nova vida inicia o curso de sua existência a partir da concepção. (…) Em conclusão a estas ligeiras considerações sobre o aborto, lembra-se, ainda, o seguinte: pressupõe-se o aborto em casos extremos, quando estiver em jogo a vida da mãe, pois, esta deve ter condições para ter mais filhos e deve, também, ter outros filhos que dependam de sua sobrevivência: a legalização do aborto não ameniza a condição de criminalidade, diante da consciência cristã”. Pastor Márcio Gomes.

Padre Ricardo Fontana

“A igreja sempre estará de acordo com a legislação vigente, com relação aos debates e evidente que também sobre aquilo que for acertado, a igreja irá acatar, como tem atuado com relação à atual legislação. Mas vale ressaltar que sempre vamos afirmar que defendemos a vida, então é preciso preservar esse bem maior, mas com cuidados para com a mãe e com a criança, sempre com o foco voltado para a vida. Então, é preciso optar sempre pela vida que está presente (seja da mãe ou da criança). Com relação à mulher que foi estuprada e acabou ficando grávida, nós temos muitos casos que as mulheres geraram filhos de um estupro e as crianças estão muito bem integradas com a família. Então com relação ao abuso, é importante perceber quem cometeu o crime, então é necessário criminalizar o estuprador e defender a vida da mãe, que vai ter a possibilidade de optar por levar a diante, ou não, a gravidez. Quem consegue superar este trauma e manter uma gestação, poderá ter uma relação familiar muito feliz e tranquila nesse sentido. Não podemos perder o foco e esquecer que o mais importante é a vida, o dom maior que Deus nos deu”. Padre Ricardo Fontana.

“Estado laico não pode se pautar por argumentos religiosos”

A professora Jane Felipe, da faculdade de educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e integrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero (GEERGE) é uma das estudiosas sobre o aborto e suas vertentes na sociedade, no estado. Ela garante que, o aborto como direito reprodutivo, significa a possibilidade de decidisão sobre os próprios corpos, o que implica na capacidade de escolher livremente quando e como as mulheres querem ter filhos e se realmente querem ter. “Significa ainda ter direto à toda e qualquer informação, contando com equipamentos de saúde (postos e hospitais devidamente equipados, com staff especializado) que garantem o acesso a um padrão de saúde sexual e reprodutiva dignos, como um direito humano fundamental”, esclarece.

Professora garante que é preciso entender quem são as pessoas que representam as mulheres. Foto: Reprodução

A professora esclarece que é preciso verificar a quem interessa a criminalização do aborto. Segundo ela, são grupos conservadores que estão por trás das determinações. “São evidentemente machistas, mal informados (ou mal intencionados), que não conseguem realizar um debate em alto nível partindo para a truculência e beligerância. Tais grupos insistem no não reconhecimento dos direitos humanos, em especial quando se trata do direito de escolha das mulheres em relação aos seus corpos. Estamos diante de um grupo que tem se prestado a retirar direitos de trabalhadores, crianças e mulheres”, analisa Jane.

Para ela, a discussão sobre aborto deve ser feita de modo amplo, considerando os aspectos históricos, sociais e culturais que envolvem o tema da interrupção da gravidez. “Para uma discussão em alto nível, é preciso ter pessoas preparadas, com uma visão técnica da questão, que se caracteriza por sua complexidade. É preciso lembrar que o estado é laico, portanto, não deve se pautar por argumentos religiosos”, sugere.

Para conseguir entender o contexto histórico do aborto, até o momento atual (em que pode haver uma votação a favor da criminalização), Jane garante que é preciso primeiro enxergar bem quem são as pessoas que dizem estar representando as mulheres. “No que eles acreditam, quais os projetos que propõem e apoiam, quem os financia, isso tudo precisa ser analisado. Grande parte do parlamento que temos apoia o estado mínimo, evidenciando assim um posicionamento a favor das elites desse país. Em segundo lugar, há uma total falta de empatia para conosco. Imagine: a mulher é violentada, engravida do estuprador e se vê novamente agredida e desrespeitada quando lhe é cerceado o direito à interrupção da gravidez em um casso desses”, opina a estudiosa.

No quesito saúde, as perspectivas são ruins, segundo Jane. Principalmente porque, segundo ela, os dados da violência sexual contra crianças e adolescentes são alarmantes e giram em torno de 500 mil estupros por ano. “Vejam o tamanho da hipocrisia. A maioria dos abusos sexuais e estupros ocorrem dentro de casa e apenas 10% deles são notificados. São meninas violentadas pelos pais, padrastos, avós, tios, irmãos, amigos da família. Como obstruir tamanho trauma, já que o maltratador não é punido, na maior parte das vezes? Desse modo, a menina é duplamente violentada, quando lhe é vedada a possibilidade de interromper a gravidez em casos de estrupo, como querem esse grupos conservadores que conquistaram postos de poder, fazendo leis que só prejudicam os mais pobres, em especial as mulheres”, acrescenta.

Para o sociólogo Guilherme Howes, a sociedade impõem diariamente determinados comportamentos na população. “O próprio aborto (tratado como um tabu/proibição) é uma imposição política de uma sociedade e de um congresso masculino e machista”, comenta.

Para Howes, a existência de grupos relacionados à religiões dentro da esfera política, torna a sociedade ainda mais conservadora. “Não apenas no Brasil ou na América, mas também na própria Europa isso tem acontecido. Esses grupos representam setores muito fortes economicamente, que financiam e norteiam as políticas de Estado e governo. Nesse sentido, eles não refletem apenas a sociedade conservadora, mas são, sobretudo, sua representação levada a cabo, politicamente. E com a bancada declarada e abertamente evangélica é muito forte (perto de 80 parlamentares) e conservadora e com temas sobre corpo e sexualidade, a união com milhares e rentistas ajuda a levar à diante essas propostas”, constata o sociólogo.

O professor garante que é necessário avaliar a ausência de discussões sobre o tema. “Não é que o aborto seja proibido, mas ao contrário, a gestação que é obrigatória. Em uma sociedade masculina, não se permite às mulheres empoderar-se do seus corpos, de sua sexualidade, controlar a produção e a reprodução de toda a sociedade. Acrescenta-se ainda que este mesmo Estado, que obriga as mulheres a gestar sem que possa dispor autonomamente de seu corpo, é o mesmo que não providencia condições sociais de sobrevivência da mãe e do seu “fruto”, não garante um pré natal digno, não dispõe de saúde e educação de qualidade. É por tudo isso, que a questão do aborto deve ser amplamente discutida, principalmente pelos mais intimamente implicados: mulheres, grupos feministas, todas e todos historicamente implicados na construção de uma cidadania em que não possibilite o domínio e a violência de uma pequena parte da sociedade sobre todo o conjunto”, finaliza Howes.