Perdidas entre as centenas de linhas escritas sobre a imigração italiana, sobrevivem as escassas memórias do povo negro

Doralice de S. da Silva e Ari da Silva. Mais que ruas, nos bairros Cidade Alta e Eucaliptos respectivamente, os nomes da avó e tio de Ireno da Silva, o Pelé, são alguns dos raros registros históricos dos primeiros afrodescendentes que povoaram Bento Gonçalves.

Da produção acadêmica até os historiadores locais e mesmo a mídia, sempre houve um esforço latente para caracterizar a Serra Gaúcha como “um pedaço da Europa no Brasil” (imagem reforçada e vendida como mercadoria, na medida em que passou a ser explorada como turismo). Para o historiador Lucas Caregnato, autor do livro “A outra face” que fala sobre os primeiros migrantes negros em Caxias do Sul, ao passo em que tal construção imagética foi sendo fortalecida a narrativa dos negros era excluída. “A academia, a universidade e a história de nossa região são racistas visto que invisibilizam os povos não europeus, como se eles não fossem sujeitos a serem estudados, como se não tivesse história”, aponta Caregnato.

A rua onde mora Pelé leva o nome da sua avó, a primeira negra a morar no local (Foto: Lucas Delgado)

 

Para Zilda Marques da Silva Nuncio, presidente da Sociedade 20 de Novembro e Conselheira da Cultura, o desconhecimento da influência negra não se resume a colonização de Bento Gonçalves, mas no seu aporte na consolidação da identidade brasileira. “Tu chega numa escola e pergunta o que os alunos sabem sobre os negros, e só sabem que chegaram escravos no navio, mas o assunto morre aí. E o resto da história? O antes? O depois? A cultura e a história negra se entrelaçam com a brasileira: temos muitos autores, músicos e até a nossa culinária (a feijoada, por exemplo)”, explana.

Como apontam Zilda e Caregnato, entre a abolição e o século XXI quase nada consta registrado em papel, seja em foto, livros ou documentos. As escassas histórias de todo um povo sobrevivem, sobremodo, nas narrativas orais de filhos, netos e bisnetos dos primeiros negros que aqui chegaram, embora mesmo nesses relatos, de conteúdo peneirado pelo tempo, a imprecisão leve a crer que o registro dos pioneiros esteja perdido quase de todo, exceto por vagos apontamentos. Não restam nomes, faces, nem palavras por escrito, seguem vivas, no entanto, as obras daqueles que ajudaram a construir Bento Gonçalves e região quase que de modo anônimo.

 

Os relatos dos primeiros negros da Estação Férrea

Em 10 de agosto de 1919, os bento-gonçalvenses festejavam a chegada do primeiro trem na recém-inaugurada ferrovia chamada de Ramal Ferroviário Carlos Barbosa – Bento. As obras da Estação da Viação Férrea, coordenadas pela companhia belga “Auxiliare”, mais que avanços e facilidades para a comunidade, trouxeram uma onda de migrantes para trabalhar na construção e manutenção dos trilhos, entre eles, os primeiros negros dos quais se tem registro na cidade.

Inicialmente acampados nos trechos das obras, após concluí-las, muitos permaneceram trabalhando para a companhia, trazendo suas famílias para cá, e estabelecendo-se nas cercanias da Estação, no bairro Cidade Alta. Uma destas famílias era a de Doralice de S. da Silva e Manuel Juvenal da Silva, avós de Pelé.

A família de Doralice e Manuel da Silva

Pelé é neto de um dos primeiros casais de negros em Bento (Foto: Lucas Delgado)

Espremida entre uma academia e uma oficina, encontra-se uma estreita ruazinha de terra que, embora quase despercebida, guarda em sua história, algumas das memórias mais marcantes da cidade. É por essa viela que se chega até a casa de Pelé, 63, neto do ferroviário Manuel e da benzedeira e filha de escravos, Doralice.

“Todo dia fico daqui olhando o trem passar. Até meu cachorro já está acostumado e senta comigo para assistir”, comenta nostalgicamente Pelé, sentado à varanda da antiga casa onde desde que nasceu observa a passagem da Maria Fumaça, que corre pelos trilhos poucos metros a sua frente. Ao lado, onde se erguem três coqueiros, ficava a antiga residência de seus avós, a primeira de todo o bairro.

Entre memórias e “causos” acerca de sua família, Pelé reconstrói, mesmo que vagamente como era a vida dos negros na época. Confirma por exemplo, que enquanto os imigrantes europeus trabalhavam na engenharia, arquitetura e administração da Estação Férrea, os negros eram maioria e lidavam com serviços braçais. “Meu avô e nosso pessoal trabalhou no serviço pesado da ferrovia e dos telégrafos. Serviço que pouca gente aguentava. Faziam o que ninguém mais queria”, comenta.

Sobre a avó, além de causos da infância que relembra em tom humorado, destaca que mais que uma famosa benzedeira com uma coleção única de chás e conhecimento impar para curas dos mais diferentes males, trabalhava na parreira dos vizinhos, junto aos mais velhos, das 15 jovens, entre netos, filhos e filhos de outros ferroviários, que ajudava a sustentar.

Pelé vive a poucos metros dos trilhos em uma das casas mais antigas do bairro Cidade Alta (Foto: Lucas Delgado)

Entre suas memórias, destaca ainda a estranheza com que os negros eram recebidos a princípio na região. “Vinham de Monte Belo para ver a gente de cor que trabalhava na ferrovia. Era novidade para eles, tinham desconfiança”, lembra.

Hoje, com 63 anos, Pelé trabalha com instalação elétrica para a prefeitura, e vive como o último negro remanescente na rua, onde antes moravam inúmeras famílias de ferroviários da região. Sua resistência, porém, vai para além disso: conta que até hoje são comuns casos de preconceito e que até a homenagem a sua avó já foi quase apagada, quando a vizinha foi até a Câmara para tentar trocar o nome da rua. “Não tenho medo de luta nenhuma, sou igual eles ou melhor, porque sempre tenho que fazer o dobro pra ganhar metade. Aprendi isso desde pivete, e sou grato, porque interiormente só cresço”, finaliza.

A chegada dos negros do 1º Batalhão Ferroviário

 

Zilda em atividade da Sociedade 20 de Novembro, na Escola Bom Retiro (Foto: Fábio Becker)

Embora vivendo em pontos opostos do município, os relatos da infância de Zilda Marques da Silva Nuncio, 53, se entrelaçam com os de Pelé. Enquanto famílias negras se estabeleciam nas redondezas da Estação Férrea, uma nova leva de migrantes negros chegava junto com 1º Batalhão Ferroviário, às cercanias do Rio das Antas, em 1943, com a missão de construir 1.500 km de malha ferroviária.

Entre os trabalhadores braçais que vieram com o batalhão, estava Almiro Delfino da Silva, o pai de Zilda. Ela conta que as famílias dos ferroviários eram praticamente nômades e enquanto os homens trabalhavam com a construção e manutenção dos trilhos e túneis, as mulheres cuidavam das crianças, além de trabalhar com costura. “Meu pai era detonador de túneis, e conforme os trilhos iam avançando, a gente ia mudando. Minha família viveu um pouco em cada lugar: Monte Negro, Morro Azul, Taquari. Onde havia estrada de ferros e túneis, a gente passou por ali”, conta. “Minha mãe ficava em casa, costurava. Como o pai ficava três, quatro meses em cada localidade, a mãe e as mulheres iam junto acompanhando, cuidando das crianças”.

Das histórias que ouvia na infância, Zilda fala que o pai sempre lembrava de um acidente na construção da Ponte Ernesto Dornelles, mais conhecida como a Ponte do Rio das Antas. “Meu pai sabia até a data certa. Contava que viu um homem pendurado pela perna, e que havia morrido muita gente”, comenta. Outro caso que lembra de cabeça é de um homem que se negou a sentar junto aos negros no caminhão do Batalhão, que descia até as comunidades próximas ao Rio das Antas para levar as famílias até a cidade para fazer compras nos mercados. “Uma vez minha avó estava no caminhão, quando um senhor que ia subir com a família, se negou a entrar na carroceria dizendo que não ia dividir espaço com a ‘negrada’”, relembra.

Hoje, presidente da Sociedade Educativa 20 de Novembro, entidade que tem o objetivo de perpetuar a cultura e arte afrodescendente, acredita que embora muito da história tenha se perdido, as obras e os relatos dos mais antigos são base para reconstruí-la e honrá-los enquanto agentes de uma sociedade que ajudaram a criar. Destaca ainda, que embora o negro tenha sofrido por um processo de desigualdade e que o governo brasileiro, ao longo, dos anos pouco se interessou em saná-la, é com o desenvolvimento das gerações que os negros buscam seu espaço e seguem escrevendo sua história. “Meu pai foi detonador e mais tarde foi promovido a guarda-freios da Maria Fumaça. Em seus últimos 30 anos, ele era o orgulhoso porteiro do clube Aliança. Embora possa parecer pouco, para ele na época era motivo de orgulho ter essas promoções. Hoje, quero que minha filha seja médica ou advogada. A gente segue criando nosso espaço”, finaliza.

 

Confira a reportagem completa na edição impressa do Semanário, do dia 17 de novembro